domingo, 30 de setembro de 2007

Aliane

Depois de um longo período árduo e triste sem postagens, voltarei com um conto apenas para quebrar o gelo. Infelizmente não consegui assistir o filme que eu gostaria muito de falar aqui, que é O Labirinto do Faúno, mas em breve conseguirei. O conto de hoje é de um colega meu da Escritores de Fantasia chamado Daniel Felismino, nele há a presença do oculto, do místico, boa pedida para quem gosta de uma fantasia mais na linha do terror. Eu aprovei, espero que aprovem também. Quanto a demora de postagens, estou preparando alguns assuntos pra esse começo de mês.

Aliane

Aliane segurava as mãos do rapaz com cuidado. Não sentia culpa por sua situação terminal e sim pena e desolação pelo seu estado e miséria. Sentia que os ossos do tórax do jovem estavam todos fraturados, numa perfeita exemplificação da fragilidade humana; a fraqueza era ao mesmo tempo tão física quanto mental e emocional. Dominados por sentimentos, os homens esqueciam a sua própria razão e decência, muitas vezes ignorando o primordial a si mesmos. A vida, por exemplo.

Os dois haviam tido o primeiro contato no meio do formigueiro humano que se formou na rua principal da pequena cidade. As festas anuais sempre traziam uma enxurrada de agitação, comércio, música e drogas para o local, arrastando emoções como o fundo do leito de um rio é levado numa forte enchente. João encontrava-se num pequeno trecho desse rio, numa corredeira de drogas e luxúria, onde as companhias eram mais variadas do que a quantidade de anéis de lata que se encontrava pelo chão. Agulhas, papelotes e cachimbos improvisados de diversos entorpecentes eram jogados por cima do muro das casas, para evitar qualquer confusão futura com a guarda municipal. Uns riam de tanta química e frenesi; outros estavam estáticos, dominando e aproveitando as reações que tomavam conta de seus nervos; outros caiam no chão, tremendo e chorando a dor dos miseráveis que só tinham a escolha entre a marginalidade e a marginalidade.

João cambaleou entre jovens risonhos e alegres, agitando copos e garrafas de bebida, com musica estridente berrando no mais alto volume, fazendo vibrar até o coração. Em meio àquela nuvem de gente, João viu uma moça relevante. Não tinha a beleza dos anjos nem a sedução dos demônios, mas tinha o instinto natural e a perfeição simétrica com que a natureza e os sonhos construíam seus frutos.

Perseguiu-a entre os corpos bêbados dançantes e o lixo pelo chão. Ela parecia ignorar sua existência e sumir entre os transeuntes, reaparecendo quando o jovem perdia a esperança de reencontra-la. Parecia que o fazia de propósito. Pelo menos era o que circulava na mente entorpecida e esverdeada pelas drogas de João. Andou tanto em seu percalço que acabou por sair da rua principal e cruzou por becos, estando Aliane sempre mais distante de João, por mais que corresse e saltasse por poças de água.

Cruzaram mais uma rua subindo uma leve inclinação gramada aonde Aliane, já tendo percebido seu perseguidor, riu e correu para a esquerda, sumindo da vista de João. O jovem deu sangue às pernas e aumentou a velocidade, temendo perder aquela visão. Aliane corria olhando para trás, rindo e desenhando uma nuvem etérea e azulada com seu corpo no meio da escuridão do local. João sentia que ela estava cada vez mais perto; tão perto que de azul agora tudo brilhava e irradiava num branco crescente que engolia a tudo que estava no raio de visão do jovem. Aliane pulou para o lado e para o alto, ascendendo risonha e brilhante como um panfleto colorido que é levado por uma golfada de ar. O jovem estendeu as mãos e balbuciou palavras suplicantes, pedindo para que voltasse; apesar de Aliane se afastar rumo às alturas, o branco crescente que vinha dela o encontrou e atingiu em cheio, fazendo com que seu coração parasse por alguns instantes, sua pele ficasse vermelha e seu corpo se contorcesse pela convulsão de razões inexplicáveis.

Caiu na beira da linha férrea. O corpo, quebrado por dentro, havia sido salvo de uma destruição maior por ter caído fora do caminho do trem. O trem, que a propósito, ficou passando ao seu lado durante seis minutos, num barulho repetitivo: tum-tum, tum-tum. Aliane sentou-se ao seu lado, observando seus olhos que pareciam brilhar por estar contemplando aquele simples rosto de menina-mulher, tão natural, complexo e extasiante que chegava a ser etéreo.

Aliane olhava com pena a sua condição. Não se sentia culpada pelo acidente; não pertencia a esse mundo e sim ao mundo dos sonhos e das divinações. Por vezes despertava paixões em quem a via. Paixões infantis e dignas de saudade para quem sobrevivia ou lembrava. A sua volta juntavam-se pessoas e ao longe se ouvia já o grito de sirenes.

“Parecia que ele corria atrás de alguém. Balançava os braços e gritava, como se chamasse”.
“Tsc. É um dos drogados da avenida. Devia estar vendo coisas”.
“Deve ter se suicidado. Nunca vi pessoa mais sozinha”.

Os comentários teciam uma teia de especulações sobre a morte. Aliane olhava para as pessoas a sua volta, mas as pessoas a sua volta não olhavam para ela. Não ressaltavam sua presença, muito menos perguntavam a ela algo, como é digno que se faça a alguma testemunha. Ignoravam sua presença no local, como uma quimera esquecida.

Começou a duvidar de sua existência.

- Daniel Felismino

Para quem desejar acompanhar o crescimento do recente blog dele, aqui está o link para o Ouro das Geraes. Até a próxima!

quinta-feira, 20 de setembro de 2007

A História Sem Fim

Cá estou eu novamente falando de mais uma obra do querido Michael Ende. Essa é a vez d'A História Sem Fim, livro que sou suspeito para criticar, já que é um dos meus preferidos. A leitura pode parecer infantil no início, mas o decorrer da trama te traga e te leva a um mundo fantasioso, tão rico quanto os contos de fadas. O fato do mundo não ser fixo, estar sempre em mudança, sofrer alterações pela incredibilidade das pessoas, acrescenta um toque mágico, quase como se você mesmo fosse Bastian, já que a situação do mundo deste é igual ao nosso. O livro é dividido em duas partes, sendo que há dois protagonistas: Atreyú, o garoto pele-verde que vive no mundo do livro, e Bastian, o menino que está fora do livro (por pouco tempo). A História Sem Fim atinge certa profundidade na sua segunda parte, quando Bastian é obrigado a lutar com seu lado negro. Luta no qual o torna maduro e confiante.

A história começa quando Bastian Balthazar Bux, um menino excluído e tímido, rouba um livro de uma pequena livraria. Na capa cor de cobre, com o desenho de duas cobras enroladas, está o título A História Sem Fim, Bastian então foge para a escola e encontra nela o refúgio para ler o curioso objeto. O livro conta sobre a jornada do jovem Atreyú em busca de uma cura para o Nada, um mal que está devorando o mundo de Fantasia. Ao desenrolar da trama, conforme Atreyú se depara com seres fantásticos ou malignos, Bastian, cada vez mais envolvida, se dá conta do elo que há entre ele e o livro cor de cobre, descobrindo então que é o único capaz de eliminar o Nada. Detalhe que o Nada não passa do distanciamento das pessoas dos seus sonhos.

Ao nomear a Imperatriz Criança de Filha da Lua, Bastian é levado ao mundo de Fantasia, onde no final das contas sobra apenas um grão. É essa parte que a aventura fica mais divertida. Bastian se vê diante da tarefa de reconstruir o mundo, moldando da forma como seu coração desejar. Mas como tudo não é tão simples, o lado negro e ambicioso do nosso jovem protagonista, que em seu mundo era corajoso e destemido, começa a entrar em cena, sendo mais uma barreira que deverá ser vencida, já que a cada minuto que ele permanece em Fantasia, mais um vestígio de quem ele realmente "é" é perdido e esquecido.

A história se alonga até o momento em que Bastian precisa decidir se quer ficar no mundo de Fantasia ou voltar ao mundo real, triste e sombrio, onde ele é rejeitado pelos colegas de escola e ignorado pelo pai. Não vou contar o final, pois não quero estragar a surpresa de quem vai ler!

É então de forma metafórica, assim como Momo e o Senhor do Tempo, que o livro termina, deixando no ar uma questão. Quantos de nós não já parou de sonhar? Quantos ainda acreditam em fábulas e estórias fantasiosas? O moderno urbanizado não nos permite isso. A sociedade nos empurra e não nos deixa admirar o que há de bom na vida. É isso que o Nada representa.

Quem assistiu o primeiro filme, ficará mais entusiasmado com o livro, pois existem muitos personagens e situaçõess novas. Quem ainda não leu, vai ficar de boca aberta e um pouco triste pela história infelizmente ter um final. Ah... Que saudade de voar em um Dragão da Sorte! Para quem desejar ler:

E-Book (em português e com ilustrações)

Até a próxima!

segunda-feira, 17 de setembro de 2007

Fênix

A fênix (também chamada de fénix), a mais bela de todas as aves fabulosas, simbolizava a esperança e a continuidade da vida após a morte. Suas principais características são renascer de suas próprias cinzas e ter a capacidade de transportar cargas enormes (sendo que em algumas lendas, ela carrega até elefantes). Seu corpo é revestido de penas vermelhas, vermelhas-arroxeadas e douradas e seu tamanho aproximado ao de uma águia. Vinda da mitologia grega, alguns escritores acreditavam que ela viveria durante 500 anos (o quíntuplo da vida de um corvo), outros calculavam que seu ciclo de vida durava 97200 anos. Porém, era da superstição de todos, que quando a ave pressentia o fim do seu ciclo de vida, ela queimava-se em uma pira funerária, feita com ramos de canela, sálvia e mirra, e logo após renascia de suas próprias cinzas. Em um ato nobre, essa nova fênix pegava os restos de seu "pai", depositava-os em um ovo de mirra e os levava para a cidade egípcia de Heliópolis, onde as cinzas seriam colocadas no altar do Sol.

Essa vida longa e o seu dramático renascimento das próprias cinzas transformaram a fênix em símbolo da imortalidade e do renascimento espiritual. No século III d. C., o nefasto imperador romano Heliógabado decidiu comer carne de fênix, a fim de conseguir ser imortal. Por "engano" comeu uma ave-do-paraíso, que havia sido enviada em vez de uma fênix; pouco tempo depois foi assassinado.

É provável que os gregos tenham baseado a idéia da fênix na mitologia egípcia. Os egípcios adoravam a ave sagrada chamada Benu, semelhante a uma garça. O Benu, assim como a fênix, era ligado a rituais de adoração ao deus-sol Ra, em Heliópolis; a lenda egípcia original dizia que ele tinha surgido de um fogo ateado em uma árvore sagrada. A cultura chinesa também possui suas próprias versões da fênix, apesar delas não ressuscitarem das cinzas, as aves chamadas Feng (macho) e Huang (fêmea), que juntas representavam o poder imperial.

Ainda existem registros históricos onde as palavras de historiadores gregos, poetas e outros estudiosos descrevem a criatura mitológica chamada fênix:

"Existe outro pássaro sagrado, também, cujo nome é fênix. Eu mesmo nunca o vi, apenas figuras dele. O pássaro raramente vem ao Egito, uma vez a cada cinco séculos, como diz o povo de Heliópolis. É dito que a fênix vem quando seu pai morre. Se o retrato mostra verdadeiramente seu tamanho e aparência, sua plumagem é em parte dourado e em parte vermelho. É parecido com uma águia em sua forma e tamanho. O que dizem que este pássaro é capaz de fazer é incrível para mim. Voa da Árabia para o templo de Hélio, dizem, ele encerra seu pai em um ovo de mirra e enterra-o no templo de Hélio. Isto é como dizem: primeiramente molda um ovo de mirra tão pesado quanto pode carregar, então abre cavidades no ovo e coloca os restos de seu pai nele, selando o ovo. E dizem, ele encerra o ovo no templo do Sol no Egito. Isto é o que se diz que este pássaro faz." - Heródoto

"E a fênix, ele disse, é o pássaro que visita o Egito a cada cinco séculos, mas no resto do tempo ela voa até a Índia; e lá podem ser visto os raios de luz solar que brilham como ouro, em tamanho e aparência assemelha-se a uma águia; e senta-se em um ninho; que é feito por ele nas primaveras do Nilo. A história do Aigyptos sobre ele é testificada pelos indianos também, mas os últimos adicionam um toque a história, que a fénix enquanto é consumida pelo fogo em seu ninho canta canções de funeral para si" - Apolônio de Tiana

"Estas criaturas (outras raças de pássaros) todas descendem de seus primeiros, de outros de seu tipo. Mas um sozinho, um pássaro, renova e renasce dele mesmo - a fênix da Assíria, que se alimenta não de sementes ou folhas verdes, mas de óleos de bálsamo e gotas de olíbano. Este pássaro, quando os cinco longos séculos de vida já se passaram, cria um ninho em uma palmeira elevada; e as linhas do ninho com cássia, mirra dourados e pedaços de canela, estabelecida lá, inflama-se, rodeada de perfumes, termina a extensão de sua vida. Então do corpo de seu pai renasce uma pequena fênix, como se diz, para viver os mesmos longos anos. Quando o tempo reconstrói sua força ao poder de suportar seu próprio peso, levanta o ninho - o ninho que é berço seu e túmulo de seu pai - como imposição do amor e do dever, dessa palma alta e carrega-o através dos céus até alcançar a grande cidade do Sol (Heliópolis, no Egito), e perante as portas do sagrado templo do Sol, sepulta-o" - Ovidio

Alguns links para os curiosos:

Creation Myths - The Benu bird of Heliopolis (em inglês)
Ancient Egypt of Mythology (em inglês)
Phoenix (em inglês)

Hoje em dia alguns estudiosos afirmam que de fato a fênix egípcia existiu, mas provavelmente foi baseada na garça cinzenta (Ardea cinera) ou ainda em uma raça de garça extinta, mas semelhante a esta. Muitos livros de fantasia, jogos, animações, filmes e desenhos fazem diversas referências a esta antiga lenda, dando vida e mostrando que literalmente a fênix nunca morre.

sexta-feira, 14 de setembro de 2007

A Viagem de Chihiro

Filmes. Ah sim, os filmes, até exato momento nunca comentei ou postei sobre filmes de fantasia. É um assunto um tanto delicado de ser abordado, mais pelo fato que a maioria desses filmes é mera adaptação de livros, como História Sem Fim, Crônicas de Nárnia e Senhor dos Anéis. Há um tempo atrás assisti uma maravilhosa animação que me fez ter outros olhos diante da cultura oriental, trata-se do longa-metragem A Viagem de Chihiro, dirigido por Hayao Miyazaki; o mesmo diretor que trouxe mais tarde para as telas a adaptação do livro O Castelo Animado, de Diana Wynne Jones.

O filme começa quando a família Ogino se muda para uma nova cidade. Chihiro, a filha do casal Akio e Yuko, uma menina de 10 anos, ao contrário dos pais, fica muito chateadas, pois não quer deixar seus amigos, sua escola e as lembranças sua infância para trás. Chegando a nova cidade, o pai decide pegar um atalho, o qual leva a família num local sem saída, onde há apenas um imenso prédio vermelho com um túnel que boceja como uma boca gigantesca. Atraídos pela curiosidade, a família Ogino segue caminhando através do misterioso túnel. Mesmo sendo contra a idéia dos pais, Chihiro acompanha-os.

Do outro lado do estranho prédio, os três encontram uma cidade misteriosa e deserta, habitada apenas por estranhas estátuas. Depois de andar alguns passos, Akio e Yuko, encontram um suculento banquete e, com fome, põem logo a devorar tudo. De repente, a noite começa cair e os dois transformam-se em porcos, diante dos olhos apavorados de Chihiro. Sozinha, a pequena menina se vê perdida diante de um mundo repleto de espíritos e seres fantásticos, habitantes de antigas lendas e superstições. Por ventura ela encontra um misterioso jovem chamado Haku. Ele ensina a Chihiro o melhor caminho para se chegar até a bruxa Yubaba, a dona da casa de banhos, a fim de conseguir um emprego.

A feiticeira revela que todos os humanos que entram em seus domínios são transformados em animais, antes de serem devorados, como foi o caso do casal Ogino. Aqueles que não têm o triste destino são obrigados a trabalhar, caso contrário são condenados à morte. Sem alternativa, a menina faz um trato com Yubaba para trabalhar na casa de banhos, renunciando sua vida e passando a se chamar Sen.

É aí que a aventura começa, pois Chihiro precisa encontrar suas lembranças e salvar seus pais, para assim fugir da cidade. E para isso contará com seus novos amigos, incluindo um estranho chamado de Sem Face. A Viagem de Chihiro é um filme para todas as idades, que mostra o significado da amizade e do amor. Portanto procure o filme, pois em qualquer locadora você pode achar. Garanto essa mistura de Alice no País das Maravilhas com cultura oriental te trará uma outra visão do que é fantasia.

terça-feira, 11 de setembro de 2007

O Último dos Arquimagos

Agradeço ao escritor e diplomata Jorge Tavares, autor da saga A Guerra das Sombras, por doar esse excelente conto, com uma estória no mesmo universo do seu livro. Vale aproveitar a situação para ressaltar que no dia 15 de Setembro ocorrerá o lançamento oficial do segundo livro da saga, O Livro de Ariela.

O Último dos Arquimagos

(A seguinte história passa-se cerca de dois mil anos antes dos eventos narrados em "A Guerra das Sombras")

I

“Glória ao antigo império que tanta luz trouxe ao mundo. Ó sol que já está se pondo, ainda agarro-me a sua luz. Pois que será de nosso povo mergulhado na escuridão?” (Tenari Ademos)

Naquele dia o sol queimou mais uma vez, amaldiçoando as terras áridas que circundam essas ruínas. O domo da velha catedral finalmente desabara por completo na noite anterior. Agora a praça central estava totalmente cercada de escombros, à exceção do imponente prédio dos arquivos, nosso maior tesouro. O povo estava cada vez mais aterrorizado. Antes fosse só a escassez de água e de comida que os tornasse melancólicos. Mas infelizmente havia algo mais...

Terminei de atravessar a praça silenciosa e entrei no prédio central. Um homem esperava-me.

— Magistrado, há algo que precisa ver. Uma mensagem de Etaerosaiod.
— Compreendo. Venha comigo, Aemar.

Seguimos pelos corredores da grande biblioteca, resquícios de uma civilização que decaía a cada momento. A visão dos tomos incontáveis me deixava cada vez mais melancólico, conforme as possibilidades de defender aquele tesouro tornavam-se mais insignificantes. Aemar, ao contrário, tinha o olhar esperançoso. Por muitos dias aguardamos essa mensagem, esse sopro de esperança. E agora, finalmente, ali estava a minha frente aquele papel, portador inocente do nosso destino.

Cheguei a meu gabinete que ficava no último pavimento. Uma larga janela desenhava-se atrás de minha mesa. A outrora gloriosa Roduan estava agora reduzida a escombros e ruínas, que se estendiam por uma área considerável. A exceção era a cidade nova, um conjunto de habitações simples construídas ao redor do prédio central em que me encontrava. Muralhas circundavam as construções recentes, protegendo-as. Distraí-me ao observar aquela paisagem triste, ponderava sobre o passado, sobre as histórias de guerra. Aemar ansiava-se com isso, pois ele desejava saber, precisava saber! Enquanto isso, o papel repousava em minhas mãos, sem que eu lhe desse a devida importância.

— Percebi sua ansiedade, Aemar. Não se preocupe. Vou ler a mensagem agora. Mas não espere demais de nossos amigos do norte. Eles têm seus próprios problemas, você sabe.
— Eu compreendo. E obrigado, Magistrado.

Percebi pelo tom de sua voz que minhas palavras não conseguiram acalmá-lo. Li o texto que a mensagem continha. Li vagarosamente todas as linhas, procurando apreender cada partícula de significado. No final, porém, vi que a mensagem era bastante simples, embora fosse muito surpreendente.

— Magistrado, e então?
— De fato, um exército vem do norte. Passaram ao largo de Tenari Aquinos.
— A terceira legião? Então é verdade? Eles vêm em nosso auxílio! — exclamou o pobre homem tomado de um intenso júbilo.
— Não seja tolo. Há muito que não existe terceira legião. Os reforços não são nossos, mas sim do inimigo. Parece que são cerca de dez mil homens. Pretendem nos massacrar.

Aemar nada disse em resposta, tamanha foi sua surpresa.

[...]

- Jorge Tavares

Existem mais três partes que infelizmente não couberam nessa postagem, mas basta clicar aqui para saberem sobre o final! LEIAM, pois vale a pena cada palavra. Para quem deseja saber mais sobre as obras de Jorge Tavares, basta acessar o site e o blog oficial d'A Guerra das Sombras.

segunda-feira, 10 de setembro de 2007

Papai Noel

Já há algum tempo não posto mais sobre criaturas mágicas e misteriosas, mas ontem, depois de assistir ao filme Expresso Polar, lembrei vagamente de uma vez quando ouvi falar da verdadeira origem da lenda do Papai Noel. Pesquisei um pouco sobre o assunto na Internet e decidi colocá-los aqui.

A lenda do Papai Noel foi inspirada em uma pessoa real, mais exatamente São Nicolau, que viveu há muitos séculos atrás. Embora tenha sido um dos santos mais populares do cristianismo, atualmente poucas pessoas conhecem sua história. Ele viveu em Petara(Patara), região na Ásia Menor, onde hoje existe a Turquia. A história diz que ele nasceu no ano de 350 e viajou para o Egito e Palestina ainda jovem, onde se tornou bispo. Durante o período da perseguição aos Cristãos pelo Imperador Dioclécio, ele foi aprisionado e solto posteriormente pelo sucessor Constantino, o Grande.

Em meados do século VI, o santuário onde foi sepultado transformou-se em uma nascente de água. Em 1087 seus restos mortais foram transportados para a Cidade de Bari na Itália que se tornou um centro de peregrinação em sua homenagem. Milhares de igrejas na Europa receberam o seu nome e a ele foram creditados vários milagres. Uma das lendas conta que ele salvou três oficiais da morte aparecendo para eles em sonhos.

Sua reputação de generosidade e compaixão é melhor exemplificada na lenda que relata como São Nicolau salvou da vida de prostituição três filhas de um homem pobre. Em três ocasiões diferentes o bispo arremessou uma bolsa contendo ouro pela janela da casa da família abastecendo, desta forma, cada filha com um respeitável dote para que pudessem conseguir um bom casamento. São Nicolau foi escolhido como o santo patrono da Rússia, da Noruega e da Grécia. É também o patrono das crianças, dos comerciantes e dos marinheiros.

A transformação de São Nicolau em Papai Noel começou na Alemanha entre as igrejas protestantes; sua imagem passou definitivamente a ser associada com as festividades do Natal e as costumeiras trocas de presentes no dia 6 de Dezembro (dia de São Nicolau). Como o Natal transformou-se na mais famosa e popular das festas, a lenda cresceu. Em 1822, Clement C. Moore escreveu o poema A Visit from St. Nicholas, retratando Papai Noel passeando em um trenó puxado por oito pequenas renas, o mesmo modo de transporte utilizado na Escandinávia (onde, por um acaso, existia um mago bondoso que vivia na floresta e na época de Natal presenteava as crianças comportadas), usando barba branca e com bochechas rosadas. O primeiro desenho retratando a figura de Papai Noel como conhecemos nos dias atuais foi feito por Thomas Nast e foi publicado no semanário Harper's Weekly no ano de 1866.

Papai Noel, com o passar do tempo, tornou-se símbolo POP, sendo o Natal uma tradição em muitos locais do mundo. Em alguns livros de fantasia ele até dá as caras, como n’As Crônicas de Nárnia. É uma infelicidade que nos tempos atuais as épocas natalinas sejam apenas mais uma contribuição para o capitalismo exacerbado. Aqui seguem alguns links interessantes:

Ilustrações do Papai Noel por vários artistas (de 1866 à 1931)
Ilustrações de Thomas Nast no Harper's Weekly
São Nicolau de Mira - Wikipédia

Até a próxima!

sábado, 8 de setembro de 2007

Chiaroscuro

Aqui segue esse conto fabuloso de teor sensual, exótico e misterioso, recheado de tensão e ambigüidade, escrito por uma colega da Escritores de Fantasia. De acordo com seu blog, Chiaroscuro é o estilo de pintura do final do Renascimento e do Barroco que valoriza do jogo de contrastes entre luz e sombra. Deliciem-se com o Bacalhau e o Vinho do Porto de Ana Cristina!

Chiaroscuro

A meio-elfa andava confiante pela floresta. Conhecia todos os caminhos e todas as trilhas. Reconhecia os pássaros pelo canto, as árvores pelo cheiro. A temperatura era tão agradável que, apesar do inverno, podia se enganar achando que a primavera havia chegado mais cedo. Nem parecia que essa excursão era para aprender certas artes mágicas obscuras que lhe foram negadas por seus ancestrais e que ela precisaria para poder vingar aqueles que amava.
Caminhou, a cabeça erguida. Ela iria quebrar a regra que proibia o ensino da Necromancia para aqueles que tinham sangue mestiço.

Escuridão. Calor. Um útero primordial, feito de quentura e negrume, envolto em caos organizado. Consciências que deslizam, unindo-se brevemente. Tocam pensamentos alheios, partilham as experiências de seu mundo escuro e calmo.
No Plano Sombrio, existem poucas regras. Talvez só uma realmente importe.
Não tocar. Jamais encostar a sua consciência em algo que não seja da matéria negra e fluida, morna, tranqüila e imutável que é a sombra.

Quando chegou ao lugar certo para a invocação, a noite já se aproximava. Não havia mais luz solar, o mundo paralisara-se naquele estranho tempo que não existe, entre o dia e a noite. O crepúsculo iria lhe dar tempo suficiente para preparar o encantamento necessário.
Armou o pequeno acampamento. Despiu-se completamente, tentando ignorar o frio que arrepiava a pele nua. Armou-se com a adaga de prata e caminhou determinada até a pedra negra em forma de porta, localizada no meio da clareira.
Começou a cantar.
Contato, afastamento. Fluidez, escuridão. Sombra não tinha consciência de há quanto tempo vivia na plenitude do seu plano. Um fisgão, algo incompreensível. Estava sendo puxado, arrancado, expulso do útero sombrio que habitava desde sempre. Não gritou por desconhecer a utilidade do som. Na massa negra do Plano Sombrio, um pequeno buraco formou-se onde Sombra estivera, preenchido lentamente pela constante fluidez da escuridão.

A canção terminou no momento em que a realidade gritou. O rasgo-fenda fechou-se sobre si mesmo. Ela não via isso, apenas sentia, os olhos fechados, concentrada no encantamento que fazia pela primeira vez. Quando o último som extinguiu-se, teve coragem para abrir os olhos, a clareira estava tomada por uma escuridão informe, e um calor difuso. Fortalecendo a voz, comandou.

- Tome forma, ó Sombra que conjurei, e atenda meu pedido.

O manto negro concentrou-se a sua frente, ela conseguiu ver novamente na luz fraca das estrelas da noite sem luar.

Mesmo aquela claridade tão mínima incomodava Sombra. A ordem da criatura pálida a sua frente era irresistível, e ele não tinha como desobedecer. Tomou uma forma levemente parecida com a daquele vulto branco, tentando entender o que estava acontecendo. Ninguém nos seus contatos primordiais havia explicado-comentado aquilo. Para obedecer a segunda ordem, quebrou a única regra que conhecia. Estendeu sua massa escura e tocou a consciência/corpo daquele estranho ser.

Choque. Dor. Confusão. Espanto. Espasmo. Orgasmo. As sensações percorriam os dois corpos. Tremiam, ela na maciez sólida da carne. Sombra ondulava, a fluidez sombria parecendo água agitada pelo vento. Tornaram-se um só.

Assim começou o longo aprendizado da meio-elfa.

Por meses, sua residência foi aquela clareira. Os dias pouco importavam, pois as sombras só podiam existir a noite. Gradativamente, o conhecimento da manipulação de tudo o que é contrário à luz e ao sol foi se tornando seu, e ela mudava. Seus olhos tornavam-se mais frios, mais calmos, parados. Sombra também mudara. A forma humanóide já lhe era confortável e aprendera a responder aos pedidos e estímulos da criatura tão pálida. Uma noite, a moça falou:

- Ó Sombra, me ensine a magia mais mortal, a Palavra que mata.
Um sibilo, sussurro sombrio e sinistro, surgiu da Sombra.
- Para... que?
Sentiu um sobressalto.
- Você... fala?
- Sim. Aprendi. Vezes. Toquei. Sua mente. Para que?
Punhos cerrados e olhos enevoados, ela respondeu.
- Para matar os que mataram os meus.
As estrelas sumiram, e a escuridão pareceu emanar de Sombra.
- Ensina. Somente se. Entregue-se.

Sombra havia tocado a consciência e a inconsciência da mestiça.Aprendera sua língua, padrões de comportamento. E também absorvera paixões, desejos, sensações desconhecidas. O tempo de aprendizado se esgotava, em breve voltaria ao caos de onde emergira. E precisava saber. Ela hesitou por instantes. Mas não durou muito sua hesitação.Abriu os braços e deixou cair o manto que a envolvia. Ficou ali parada, imóvel. Esperando que a sombra a envolvesse, como seu calor inesperado. A imagem sensorial que tinha associado ao negrume era a do frio congelante da noite. Mas o toque daquela Sombra era diferente. Tinha calor, e a consistência de algo fluído, a prendendo em um abraço que parecia eterno.

Ouviu a voz que soprou em seu ouvido, sentiu o hálito fresco da criatura, vinda de um outro plano, atendendo seu chamado. Sabia ser proibido o contato físico com seres extra-planares, mas como podia recusar?

Pendeu a cabeça para trás, olhos fechados, apenas sentindo o êxtase e a agonia que acompanhavam cada toque do amante sombrio que escolhera para si. Acompanhava o rastro de calor do caminho que a matéria escura percorria na pele clara, arrepiada de prazer. Gemia alto quando uma parte mais sensível do seu corpo era tocada. Estava imersa nas sensações.

Sombra sabia, pelo contato com a consciência, o que daria prazer à criatura alva que estava ali, nos seus braços. Mas não podia esperar pelo próprio êxtase, pelas estranhas ondas que tremulavam em sua matéria ao roçar na pele. A tensão crescia. Algo deveria acontecer; Sombra desistiu de sua forma humanóide, e na sua consistência fluida, cobriu toda a mulher, tocando-a totalmente, em todo o corpo. Abafou seus gemidos, penetrou em seu corpo, tornaram-se um.

Ela acordou sozinha, nua, no meio da clareira. Não havia sinal de nada do que acontecera. Perguntou-se se não teria sido apenas um sonho. Apenas a memória de um novo feitiço dizia que não. Sentiu-se triste, como se perdesse algo para nunca mais recuperar. Abraçou seus próprios ombros e permitiu-se um momento de nostalgia, lembrando do toque quente e leve do ser que invocara. Mas o momento passou, e ela seguiu em seu caminho.

Escuridão, caos. Rigidez, deformação. Regras foram quebradas. Toque em criaturas de pele. Profanação! A sempre tranqüila massa escura do Plano Sombrio agitava-se, convulsiva, ao sentir na sua consciência o que Sombra fizera. Não foi punido por não existirem castigos ali. E mesmo que tivesse sido, para ele valeria a pena. Tornou-se exceção, Sombra que sentia. Treva que poderia um dia seguir aquela a quem tocara.

- Ana Cristina

Quem deseja acessar mais contos da Ana, seus blogs são Doces Pensantes e Cubo dos Sonhos.

Momo e o Senhor do Tempo

Depois de ler o maravilhoso livro A História Sem Fim de Michael Ende, fiquei intrigado se ele era mais um daqueles autores feitos apenas de um sucesso. Estava enganado. Fuçando a modesta biblioteca da minha antiga escola, achei um exemplar do Momo e o Senhor do Tempo, livro ao qual já ouvira falar através de sábias palavras ditas na Escritores de Fantasia (sim, eu puxo saco dessa comunidade). A experiência em ler foi indescritível, cada capítulo é como uma lição de moral digna das Fábulas de Esopo. O mundo de Momo é como um microcosmo, refletindo toda nossa sociedade atual, e nos faz lembrar e repensar sobre o que fazemos, como fazemos e porque fazemos. Para quem procura um livro com a consistência de O Pequeno Príncipe, com a sagacidade de uma criança enfrentando o mal ou mais um belíssimo trabalho de Michael Ende, Momo e o Senhor do Tempo é mais do que recomendado. É engraçado pensar que o autor escreveu esse livro a partir de uma estória contada por um estranho sentado ao seu lado no trem...

O tempo é um enigma que intriga crianças e adultos que ainda não desaprenderam de se maravilhar com aquilo que parece evidente. Sob a influência dos homens cinzentos, uma organização fantasmagórica, um número cada vez maior de seres humanos é levado a economizar tempo. Mas, na verdade, o que signifca esse tempo poupado? Ora, tempo é vida, e a vida mora nos corações. Quanto mais as pessoas poupam tempo, mais pobre e superficial e fria se torna sua existência e mais alheias elas se tornam a sia mesmas. Quem mais sente essa ausência de amor e vida são as crianças. Seu protesto, no entanto, passa despercebido.

Quando o perigo se agrava e o mundo parece já estar nas mãos dos homens cinzentos. Mestre Hora, o misterioso "distruibuidor de tempo", resolve agira drasticamente. Para isso, precisa da ajuda de uma criança humana. O mundo pára, e MOMO, a pequena heroína desgrenhada desta história, luta sozinha contra todo um batalhão de homens cinzentos. Leva como armas apenas uma flor na mão e uma tartaruga debaixo do braço, e acaba triunfando maravilhosamente. Todo tempo da vida até então roubado dos seres humanos volta a seus verdadeiros donos e esperança volta a um mundo desenganado.

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Trecho retirado das abas do livro Momo e o Senhor do Tempo.

segunda-feira, 3 de setembro de 2007

Contos

Para dar um pouco de vida a esse blog, que até exato momento só contou com artigos, decidi (com auxílio de um colega de Orkut chamado Alex) colocar alguns contos do pessoal que mantém enriquecida a comunidade Escritores de Fantasia. Logo mais pretendo também providenciar entrevistas com os nosso novos escritores; quem sabe eu consigo até uma com o André Vianco.

Dando início aos contos, começarei com um doado pelo Saint-Clair Stockler, um dos ícones da comunidade, intitulado O dia em que Lúcifer apareceu para ele, é um conto ácido, sarcástico e com uma pitada sombria e metafórica. Espero que apreciem.

O dia em que Lúcifer apareceu pra ele

Cada vez me sinto mais perto de Deus.
-Adília Lopes

Um dia Lúcifer apareceu para ele. Era fim de novembro ou início de dezembro. De repente, quando olhou ele estava lá. Lúcifer não parecia com um cavalheiro ricamente vestido e de finos bigodes. Tampouco era uma criatura como um bode. Ainda tentou ver se os pés de Lúcifer eram fendidos como cascos, mas ele não se chamava Mendes. Lúcifer era assim como um menino que esquecera de crescer, tinha o corpo pequeno, braços e pernas infantis. O rosto era o de uma criança, mas quando olhou bem no fundo dos olhos dele, viu uma tristeza que de tão antiga já não tinha mais data. Lúcifer só ficou ali, olhando para ele. Então ele teve vontade de se levantar de onde estivera deitado a tarde toda e mostrar o pau para o Lúcifer. Mas se lembrou que mesmo Caído, o Lúcifer era um Anjo do Senhor, e a gente não mostra o pau para um Anjo Dele. Estrela da Manhã, lembrou-se de repente, era esse talvez o nome que melhor servia para descrever Lúcifer, que continuava mudo e fitando-o do outro lado do quarto. Uma estrela pequena que ainda insistisse em brilhar na luz do dia. Teve vontade então de se levantar e tomar no colo aquele corpo de menino e ficar acariciando seus cabelos louros e finos para que, pouco a pouco, sumisse a tristeza que ele via em seus olhos.

Foi então que Lúcifer olhou para ele e, num segundo, centenas de pequenos pensamentos, sensações e imagens passaram pela sua cabeça. Sentiu o cansaço secular do outro, perdido numa batalha da qual nenhum dos dois lados lembrava mais o motivo que a detonara. Viu o surgimento de um planeta, sua lenta evolução e o desenrolar da vida, que era monitorada pelos olhos de outros tão antigos quanto Lúcifer. Sentiu a presença de uma Força muito maior que a de Lúcifer, mas nem por isso Boa ou Má; uma Força talvez surpresa com as criaturinhas que criara. Viu a queda de uma grande árvore, provocada por um raio, no interior de uma floresta densamente coberta por árvores. Mesmo não havendo nenhum animal por perto, o barulho da árvore tombando foi audível. Viu o momento exato em que um velho elefante africano sentiu a aproximação da morte e, como fizera antes seus ancestrais e como faria depois seus descendentes, afastou-se da manada para morrer sozinho. Viu uma mulher morrendo de câncer numa favela em Calcutá. Apesar da dor, a mulher estava envolta em tecidos coloridos que combinavam, como numa pintura, com os tecidos coloridos das outras mulheres pressurosas a sua volta. Viu o nascimento do filho de um velho operário francês, um nascimento que era aguardado pelo operário e sua mulher há mais de 20 anos, e agora, muito depois de eles terem perdido as esperanças, em frente deles estava a criança, como uma estranha e alegre piada de Deus. Viu o cadáver de um traficante colombiano que se decompunha lentamente no fundo de um poço. Daquela decomposição, centenas de vidas se alimentavam: bactérias, insetos e vermes. Viu um garoto sendo currado num reformatório no Sul dos Estados Unidos. Viu o casamento de dois jovens numa aldeia da Grécia. O vinho grego tinha um gosto estranho e forte em sua língua e o cheiro de suor dos camponeses o deixou meio tonto. Viu um grupo de monges budistas, envoltos em suas vestes da cor de açafrão, num templo em Lhasa. Os monges se prostravam em reverência diante de uma imensa estátua do Buda que tinha mais de 400 anos. Quando ele olhou, o sorriso do Iluminado parecia ter todas as respostas. Mas essa impressão só durou um segundo. Viu um velho chinês tuberculoso morrendo aos poucos na cela de uma prisão úmida na China Vermelha, condenado a prisão perpétua por ter em casa alguns livros considerados perigosos pelo Regime. Viu um animal parecido com um rato e considerado extinto pelos zoólogos há mais de 100 anos se esgueirar por entre os arbustos de uma floresta, com um lagarto na boca. Viu uma menina ter seu clitóris extirpado com uma gilete enferrujada por uma velha de mãos experientes no Sudão. Depois de terminar, a velha costurou a vagina da menina com agulha e linha grossa, sem qualquer tipo de anestesia. Viu um jovem mafioso da Yakuza exibindo orgulhoso para sua amante as magníficas tatuagens que o identificavam como membro de determinado clã e em determinada posição dentro desse clã. A amante passava a mão lentamente pelas tatuagens e pelo corpo do homem e seu deseja aumentava mais. Queria ser fodida por aquelas tatuagens, por aquele homem perigoso, um assassino, mas que justamente por isso a excitava a cada vez que o via. Viu uma cientista ruiva no Canadá cabeceando de sono sobre um potente microscópio. Ela pesquisava a cura para a Aids e, se perguntada naquele momento, não saberia dizer porque continuava pesquisando, porque não ia dormir, pois já era de madrugada, ela talvez apenas soubesse dizer que sentia dentro de si esse impulso estranho que a impelia a continuar, incessantemente, dia após dia, sem descanso. Viu um homem no Brasil sacolejando em pé dentro de um ônibus no fim da tarde, com um calor de mais de quarenta graus. O homem estava morto de fome e só pensava em chegar em casa e comer um prato de arroz com feijão e dois ovos fritos em cima. Tudo isso ele viu, e muito mais, naquele breve momento em que Lúcifer olhou para ele com seus olhos tristes de menino.

E num segundo (abrir e fechar de asas, cintilações) Lúcifer já não estava mais lá. Pensou nas imagens que vira. Seriam pequenas epifanias tortas? Ficou em dúvida se o Anjo realmente estivera ali, com seus olhinhos que sem falar diziam tudo. Podia ter sido o vento nas cortinas. Ou as lembranças misturadas, caóticas, de milhares de histórias, escritas por centenas de escritores, que ele lera desde que se tornara um leitor ávido de sensações. Ou, talvez, o efeito do ácido que tinha tomado um pouco antes.

Como a dúvida persistisse, levantou-se e foi tomar uma coca-cola.

-Saint-Clair Stockler

Para quem deseja entrar em contato com Saint-Clair, seu email é saintclairstockler@gmail.com.