domingo, 30 de setembro de 2007

Aliane

Depois de um longo período árduo e triste sem postagens, voltarei com um conto apenas para quebrar o gelo. Infelizmente não consegui assistir o filme que eu gostaria muito de falar aqui, que é O Labirinto do Faúno, mas em breve conseguirei. O conto de hoje é de um colega meu da Escritores de Fantasia chamado Daniel Felismino, nele há a presença do oculto, do místico, boa pedida para quem gosta de uma fantasia mais na linha do terror. Eu aprovei, espero que aprovem também. Quanto a demora de postagens, estou preparando alguns assuntos pra esse começo de mês.

Aliane

Aliane segurava as mãos do rapaz com cuidado. Não sentia culpa por sua situação terminal e sim pena e desolação pelo seu estado e miséria. Sentia que os ossos do tórax do jovem estavam todos fraturados, numa perfeita exemplificação da fragilidade humana; a fraqueza era ao mesmo tempo tão física quanto mental e emocional. Dominados por sentimentos, os homens esqueciam a sua própria razão e decência, muitas vezes ignorando o primordial a si mesmos. A vida, por exemplo.

Os dois haviam tido o primeiro contato no meio do formigueiro humano que se formou na rua principal da pequena cidade. As festas anuais sempre traziam uma enxurrada de agitação, comércio, música e drogas para o local, arrastando emoções como o fundo do leito de um rio é levado numa forte enchente. João encontrava-se num pequeno trecho desse rio, numa corredeira de drogas e luxúria, onde as companhias eram mais variadas do que a quantidade de anéis de lata que se encontrava pelo chão. Agulhas, papelotes e cachimbos improvisados de diversos entorpecentes eram jogados por cima do muro das casas, para evitar qualquer confusão futura com a guarda municipal. Uns riam de tanta química e frenesi; outros estavam estáticos, dominando e aproveitando as reações que tomavam conta de seus nervos; outros caiam no chão, tremendo e chorando a dor dos miseráveis que só tinham a escolha entre a marginalidade e a marginalidade.

João cambaleou entre jovens risonhos e alegres, agitando copos e garrafas de bebida, com musica estridente berrando no mais alto volume, fazendo vibrar até o coração. Em meio àquela nuvem de gente, João viu uma moça relevante. Não tinha a beleza dos anjos nem a sedução dos demônios, mas tinha o instinto natural e a perfeição simétrica com que a natureza e os sonhos construíam seus frutos.

Perseguiu-a entre os corpos bêbados dançantes e o lixo pelo chão. Ela parecia ignorar sua existência e sumir entre os transeuntes, reaparecendo quando o jovem perdia a esperança de reencontra-la. Parecia que o fazia de propósito. Pelo menos era o que circulava na mente entorpecida e esverdeada pelas drogas de João. Andou tanto em seu percalço que acabou por sair da rua principal e cruzou por becos, estando Aliane sempre mais distante de João, por mais que corresse e saltasse por poças de água.

Cruzaram mais uma rua subindo uma leve inclinação gramada aonde Aliane, já tendo percebido seu perseguidor, riu e correu para a esquerda, sumindo da vista de João. O jovem deu sangue às pernas e aumentou a velocidade, temendo perder aquela visão. Aliane corria olhando para trás, rindo e desenhando uma nuvem etérea e azulada com seu corpo no meio da escuridão do local. João sentia que ela estava cada vez mais perto; tão perto que de azul agora tudo brilhava e irradiava num branco crescente que engolia a tudo que estava no raio de visão do jovem. Aliane pulou para o lado e para o alto, ascendendo risonha e brilhante como um panfleto colorido que é levado por uma golfada de ar. O jovem estendeu as mãos e balbuciou palavras suplicantes, pedindo para que voltasse; apesar de Aliane se afastar rumo às alturas, o branco crescente que vinha dela o encontrou e atingiu em cheio, fazendo com que seu coração parasse por alguns instantes, sua pele ficasse vermelha e seu corpo se contorcesse pela convulsão de razões inexplicáveis.

Caiu na beira da linha férrea. O corpo, quebrado por dentro, havia sido salvo de uma destruição maior por ter caído fora do caminho do trem. O trem, que a propósito, ficou passando ao seu lado durante seis minutos, num barulho repetitivo: tum-tum, tum-tum. Aliane sentou-se ao seu lado, observando seus olhos que pareciam brilhar por estar contemplando aquele simples rosto de menina-mulher, tão natural, complexo e extasiante que chegava a ser etéreo.

Aliane olhava com pena a sua condição. Não se sentia culpada pelo acidente; não pertencia a esse mundo e sim ao mundo dos sonhos e das divinações. Por vezes despertava paixões em quem a via. Paixões infantis e dignas de saudade para quem sobrevivia ou lembrava. A sua volta juntavam-se pessoas e ao longe se ouvia já o grito de sirenes.

“Parecia que ele corria atrás de alguém. Balançava os braços e gritava, como se chamasse”.
“Tsc. É um dos drogados da avenida. Devia estar vendo coisas”.
“Deve ter se suicidado. Nunca vi pessoa mais sozinha”.

Os comentários teciam uma teia de especulações sobre a morte. Aliane olhava para as pessoas a sua volta, mas as pessoas a sua volta não olhavam para ela. Não ressaltavam sua presença, muito menos perguntavam a ela algo, como é digno que se faça a alguma testemunha. Ignoravam sua presença no local, como uma quimera esquecida.

Começou a duvidar de sua existência.

- Daniel Felismino

Para quem desejar acompanhar o crescimento do recente blog dele, aqui está o link para o Ouro das Geraes. Até a próxima!

2 comentários:

Chellot disse...

Um conto que prende a atenção do leitor até o fim. Muito bem escrito. Vou checar o blog que indicaste. Tenho verdadeira paixão por histórias de fantasia, seja em livros, filmes ou teatro. Voltarei.

Beijos de Sol e de Lua.

Aylok disse...

Continue postando, por favor ^^
Seu blog é muito interessante!