segunda-feira, 3 de setembro de 2007

Contos

Para dar um pouco de vida a esse blog, que até exato momento só contou com artigos, decidi (com auxílio de um colega de Orkut chamado Alex) colocar alguns contos do pessoal que mantém enriquecida a comunidade Escritores de Fantasia. Logo mais pretendo também providenciar entrevistas com os nosso novos escritores; quem sabe eu consigo até uma com o André Vianco.

Dando início aos contos, começarei com um doado pelo Saint-Clair Stockler, um dos ícones da comunidade, intitulado O dia em que Lúcifer apareceu para ele, é um conto ácido, sarcástico e com uma pitada sombria e metafórica. Espero que apreciem.

O dia em que Lúcifer apareceu pra ele

Cada vez me sinto mais perto de Deus.
-Adília Lopes

Um dia Lúcifer apareceu para ele. Era fim de novembro ou início de dezembro. De repente, quando olhou ele estava lá. Lúcifer não parecia com um cavalheiro ricamente vestido e de finos bigodes. Tampouco era uma criatura como um bode. Ainda tentou ver se os pés de Lúcifer eram fendidos como cascos, mas ele não se chamava Mendes. Lúcifer era assim como um menino que esquecera de crescer, tinha o corpo pequeno, braços e pernas infantis. O rosto era o de uma criança, mas quando olhou bem no fundo dos olhos dele, viu uma tristeza que de tão antiga já não tinha mais data. Lúcifer só ficou ali, olhando para ele. Então ele teve vontade de se levantar de onde estivera deitado a tarde toda e mostrar o pau para o Lúcifer. Mas se lembrou que mesmo Caído, o Lúcifer era um Anjo do Senhor, e a gente não mostra o pau para um Anjo Dele. Estrela da Manhã, lembrou-se de repente, era esse talvez o nome que melhor servia para descrever Lúcifer, que continuava mudo e fitando-o do outro lado do quarto. Uma estrela pequena que ainda insistisse em brilhar na luz do dia. Teve vontade então de se levantar e tomar no colo aquele corpo de menino e ficar acariciando seus cabelos louros e finos para que, pouco a pouco, sumisse a tristeza que ele via em seus olhos.

Foi então que Lúcifer olhou para ele e, num segundo, centenas de pequenos pensamentos, sensações e imagens passaram pela sua cabeça. Sentiu o cansaço secular do outro, perdido numa batalha da qual nenhum dos dois lados lembrava mais o motivo que a detonara. Viu o surgimento de um planeta, sua lenta evolução e o desenrolar da vida, que era monitorada pelos olhos de outros tão antigos quanto Lúcifer. Sentiu a presença de uma Força muito maior que a de Lúcifer, mas nem por isso Boa ou Má; uma Força talvez surpresa com as criaturinhas que criara. Viu a queda de uma grande árvore, provocada por um raio, no interior de uma floresta densamente coberta por árvores. Mesmo não havendo nenhum animal por perto, o barulho da árvore tombando foi audível. Viu o momento exato em que um velho elefante africano sentiu a aproximação da morte e, como fizera antes seus ancestrais e como faria depois seus descendentes, afastou-se da manada para morrer sozinho. Viu uma mulher morrendo de câncer numa favela em Calcutá. Apesar da dor, a mulher estava envolta em tecidos coloridos que combinavam, como numa pintura, com os tecidos coloridos das outras mulheres pressurosas a sua volta. Viu o nascimento do filho de um velho operário francês, um nascimento que era aguardado pelo operário e sua mulher há mais de 20 anos, e agora, muito depois de eles terem perdido as esperanças, em frente deles estava a criança, como uma estranha e alegre piada de Deus. Viu o cadáver de um traficante colombiano que se decompunha lentamente no fundo de um poço. Daquela decomposição, centenas de vidas se alimentavam: bactérias, insetos e vermes. Viu um garoto sendo currado num reformatório no Sul dos Estados Unidos. Viu o casamento de dois jovens numa aldeia da Grécia. O vinho grego tinha um gosto estranho e forte em sua língua e o cheiro de suor dos camponeses o deixou meio tonto. Viu um grupo de monges budistas, envoltos em suas vestes da cor de açafrão, num templo em Lhasa. Os monges se prostravam em reverência diante de uma imensa estátua do Buda que tinha mais de 400 anos. Quando ele olhou, o sorriso do Iluminado parecia ter todas as respostas. Mas essa impressão só durou um segundo. Viu um velho chinês tuberculoso morrendo aos poucos na cela de uma prisão úmida na China Vermelha, condenado a prisão perpétua por ter em casa alguns livros considerados perigosos pelo Regime. Viu um animal parecido com um rato e considerado extinto pelos zoólogos há mais de 100 anos se esgueirar por entre os arbustos de uma floresta, com um lagarto na boca. Viu uma menina ter seu clitóris extirpado com uma gilete enferrujada por uma velha de mãos experientes no Sudão. Depois de terminar, a velha costurou a vagina da menina com agulha e linha grossa, sem qualquer tipo de anestesia. Viu um jovem mafioso da Yakuza exibindo orgulhoso para sua amante as magníficas tatuagens que o identificavam como membro de determinado clã e em determinada posição dentro desse clã. A amante passava a mão lentamente pelas tatuagens e pelo corpo do homem e seu deseja aumentava mais. Queria ser fodida por aquelas tatuagens, por aquele homem perigoso, um assassino, mas que justamente por isso a excitava a cada vez que o via. Viu uma cientista ruiva no Canadá cabeceando de sono sobre um potente microscópio. Ela pesquisava a cura para a Aids e, se perguntada naquele momento, não saberia dizer porque continuava pesquisando, porque não ia dormir, pois já era de madrugada, ela talvez apenas soubesse dizer que sentia dentro de si esse impulso estranho que a impelia a continuar, incessantemente, dia após dia, sem descanso. Viu um homem no Brasil sacolejando em pé dentro de um ônibus no fim da tarde, com um calor de mais de quarenta graus. O homem estava morto de fome e só pensava em chegar em casa e comer um prato de arroz com feijão e dois ovos fritos em cima. Tudo isso ele viu, e muito mais, naquele breve momento em que Lúcifer olhou para ele com seus olhos tristes de menino.

E num segundo (abrir e fechar de asas, cintilações) Lúcifer já não estava mais lá. Pensou nas imagens que vira. Seriam pequenas epifanias tortas? Ficou em dúvida se o Anjo realmente estivera ali, com seus olhinhos que sem falar diziam tudo. Podia ter sido o vento nas cortinas. Ou as lembranças misturadas, caóticas, de milhares de histórias, escritas por centenas de escritores, que ele lera desde que se tornara um leitor ávido de sensações. Ou, talvez, o efeito do ácido que tinha tomado um pouco antes.

Como a dúvida persistisse, levantou-se e foi tomar uma coca-cola.

-Saint-Clair Stockler

Para quem deseja entrar em contato com Saint-Clair, seu email é saintclairstockler@gmail.com.

3 comentários:

Daniel Felismino disse...

Legal mesmo. Bem estilo Saint-Clair, ou pelo menos como eu imaginei que fosse algum trabalho dele.

Ficam aqui meus elogios pelo impacto que as imagens causam, acontecendo todas ao mesmo tempo.

Abraços.

Anônimo disse...

Muito bom, Saint!

Wendell Amaro disse...

Eu gostei. Não se minha interpretação esta correta (pois acho que este conto deve ter mais de uma) mas...

Bom acho que foi mais um estudo do ser humano, que se importa pouco com as coisas. Ela viu todo o sofrimento do mundo (que apesar de ter suspeitas de puro devaneio era verdade), e no final apenas se perguntou se aquilo aconteceu mesmo ou se foi apenas uma ilusão, as ela acabou dando de ombros e foi realizar seu desejo mais pertinente (que no caso era tomar coca-cola).

Mostra o que o ser humano faz para melhorar o mundo: NADA.

Muito bom gostei mesmo, só não sei se me equivoquei na interpretação mas...